Economia do Golo
O desporto é a nossa paixão e a escrita o nosso vicio. Sempre dispostos a conjugar as duas artes, na certeza de uma junção sempre feliz... ousem descobrir!

O Quinto Beatle

Artigo Publicado Originalmente em www.tsf.pt a 10 de Dezembro de 2019

O futebol é feito de lendas, de grandes feitos, de grandes jogos e, também, de homens… homens de rosto bem definido que se demarcaram dos demais pela sua capacidade de encantar dentro das quatro linhas, ou da sua capacidade de surpreender e escandalizar fora destas…contudo, poucos capazes de conjugar ambos os predicados!

O mais genial a combinar estas duas características terá sido Best…George Best, o Quinto Beatle alcunha que recebeu após alucinante exibição na velhinha Luz, numa noite de 1966, em que a ilusão benfiquista em meia dúzia de minutos se transformou em pesadelo.

Além desse talento natural, Best seria, talvez, a pessoa que todos quereriam ter como amigo. Destravado, sem limites, vivia a vida como se dela dependesse aquela noite, em que nos bares da moda era a companhia mais requisitada ou o homem mais desejado. Além disso, num tempo em que os Beatles eram a moda, George assumia esse estilo de vida. De cabelos compridos, com as roupas de última moda e com um estilo de vida invejado era o retrato mais fiel dos “Fab Four” de Liverpool, ainda que ele espalhasse charme e esbanjasse a fortuna na rival Manchester.

A apimentar este cocktail, uma característica muito própria, que faz com que este norte-irlandês, nascido em Belfast em 1946, se tornasse eterno: aquelas frases plenas de ironia, sarcasmo, em que simultaneamente realizava um exercício de auto-endeusamento e fazia sorrir quem os ouvia.

George era, pois, uma personagem adorada. Apesar de pisar a linha repetidas vezes, conseguia ser capaz de convencer que merecia mais uma oportunidade não para ele… mas para os que poderia privilegiar com o seu talento!

E como este era grande… já narramos a história em que sozinho silenciou uma Luz que só tinha um Deus: Eusébio de seu nome, na antecâmara de se tornar imortal naquele Mundial que se disputaria na Velha Albion. Nesse dia, em vez do fado de Amália, o único som a troar foi a Pop dos Beatles, o rock progressista dos The Who… uma amálgama de barulho estranho para um Portugal, ainda, demasiado amarrado aos ditames salazaristas que nos isolavam da Europa.

Porém, não só desse momento viveria a fama de George com as equipas portuguesas. Apesar de não ter encontrado Eusébio no mundial inesquecível, em que Bobby Moore recebeu a Taça Jules Rimet, mas em que os nossos Magriços foram os vencedores morais, viveriam um duelo divino…digno dos deuses! Estávamos em 1968… o Benfica tentava, mais uma vez, exorcizar a maldição do treinador húngaro, Bella Gutman, que prometeu que, sem ele, numa final, o clube estaria 100 anos sem vencer uma prova europeia Para momentos divinos, estádios que serão eternos: Wembley. De um lado, o Manchester United, de Sir Matt Busby. Um Manchester que 10 anos antes terá sofrido a maior das suas provações, quando o acidente aéreo de Munique levou 8 dos seus melhores filhos, leia-se jogadores! Deus, na dor, foi, contudo, parcimonioso, e poupou o verdadeiro ideólogo da equipa (o treinador) e a representação mais assertiva de talento daquela equipa (Sir Bobby Charlton). Do outro, um Benfica, que talvez terá sido a equipa da década de 60, aquela que todos os adeptos do clube ou não, conseguem recitar de cor! Um jogo maravilhoso… que terminaria empatado a um, no fim do tempo regulamentar, depois de Eusébio desperdiçar um golo que em 99% das vezes não perderia! Mas, os “anjos de Munique” (nome pelo qual ficaram conhecidos os falecidos da tragédia aérea) lá de cima, levaram aqueles homens a merecerem a alcunha de Devils, Red Devils. Em três minutos, entre os 97 e 100, a loucura, a insanidade inglesa… três golos em três minutos,  a consagração europeia para o clube de Manchester e Best a ser determinante com um golo e momentos de magia inebriantes. Por essa razão, receberia a Bola de Ouro do France Football, numa demonstração clara que era número 1 europeu. Esclareça-se que, por aqueles anos, só os jogadores do Velho Continente, ao contrário do que agora sucede, eram candidatos ao galardão.

Este momento seria, há quem afirme a pés juntos, a glória e o início da desgraça do jogador. Aquele momento, bom demais para ser real, despoletou-lhe sonhos, expectativas. Acreditava que poderia ser o início de uma era… de um Manchester a encetar um ciclo como o que o Real construíra no início da Taça dos Campeões. E se a equipa madrilena era sinónimo de Di Stefano, o Manchester seria sinónimo dele, George Best, com uma equipa construída em torno de si.

Não seria assim!

O clube de Old Trafford só voltaria a tocar o céu da Europa em 1999, em que aqueles três minutos finais enlouqueceram o Bayern Munique, com Schmeichel na área contrária, Beckham a marcar cantos e Sheringham e Solskjaer a darem uma glória capaz de igualar Alex Feguson a Matt Busby.

Além disso, Matt Busby, após 24 anos ao comando do clube, abandonava o barco. Haveria de voltar no ano seguinte, mas de passagem e novas glórias europeias pareciam cada vez mais impossível.

E isso seria o passo para a perdição de Best. A ânsia de se afirmar como o melhor, o desejo de continuar a vencer levou-o a ter de lidar com uma pressão que sentia não ser capaz de tornear, de vencer. Por isso, nada melhor que abafar essas preocupações, essas dores, com noites demasiado longas e em branco regadas pelo champagne do mais exclusivo e belas mulheres. Com isso, o rendimento em campo decaía, as idas aos treinos deixavam de ser uma certeza e o descontrolo emocional em campo algo óbvio.

Porém, seria também isso que tornaria Best lendário. A capacidade de conjugar a indisciplina com o génio. O que dizer daquela vez que após ter sido expulso num derby com o City, após reclamar uma grande penalidade não assinalada e por isso atirar um punhado de relva ao árbitro foi suspenso por seis semanas? Após o cumprimento do castigo e ter sido premiado com uma surpreendente titularidade frente ao Northampton, a promessa de marcar um golo por cada semana de castigo. Todos se riram…porém, no final da contenda o placard apresentava um resultado de seis bolas a zero para o clube de George… com seis golos do homem que, nesse dia, foi mesmo The Best!

Mas, cada vez menos, George era jogador de futebol! Cada vez mais eram os problemas! Cada vez mais as faltas aos treinos, a desilusão com o futebol e um choque de fronte com uma realidade sem títulos, quando os castelos de areia construídos previam títulos, prémios individuais e honrarias levavam a um sentimento de vazio; sentimento esse, que o fez anunciar o abandono da modalidade por duas vezes, para sempre voltar…talvez, pela volatilidade com que mudava de dona do coração, também mudar de opinião! Não obstantem verdade seja dita, ao futebol Best sempre regressou…quanto às  mulheres, bem sabemos que foi outra história!

Até que em 1974, o United cansou-se da irreverência do génio, dos problemas que este causava e livrou-se dele. Porém, castigo dos deuses, que jamais gostarão de ver um deles despeitado, humilhado: o clube descia de divisão, e, consequentemente, com George, partia a denominada “Holly Trinity”, leia-se Best, Charlton e o escocês Dennis Law.

Começava aí a segunda fase de Best. O futebol passava a ser mesmo secundário! Se o topo tinha sido atingido naquela tarde de 1968, então importava era levar a vida ao seu estilo! Passaria pela África do Sul, pelos Estados Unidos, onde coabitaria com António Simões e, durante três semanas, com Vítor Baptista numa dupla que tinha tudo para correr mal, pela Escócia, por Hong Kong, pela sua Irlanda do Norte, pela Austália  regressaria à Inglaterra, numa vida digna de um saltimbanco que perdeu o amor pela sua arte…um artista vagabundo, errante e já dominado pela bebida!

Bebida essa que lhe causaria milhentos problemas… que o levaria a ser preso inúmeras vezes por conduzir embriagado, por violência doméstica, até por furtos… que faria com que tivesse problemas conjugais com Alex, talvez a única mulher que teve estofo para aguentar o seu estilo de vida e que levaria a que tivesse de ser transplantado ao fígado com a cominação que jamais poderia tocar numa gota de álcool.

Debalde… George já não conseguiria suportar o desejo de mais um copo, de mais um brinde e o futebol seria meramente acessório.

Acabaria por morrer em 2005, numa cama de hospital, com uma dedicatória de Pelé aos pés da cama com os dizeres “ Do segundo melhor jogador de todos os tempos, Pelé.” e após ter-se deixado fotografar quase moribundo e permitindo fosse legendada com um simples “não morra como eu.”

Porém, que arrependimentos poderá ter um homem que, segundo ele, “ dizem ter dormido com sete miss mundo. Não é verdade. Foram só quatro. Deixei as outras três penduradas.?” E como poderia ele regenerar-se se” eu podia inscrever-me nos Alcoólicos Anónimos, mas como permaneceria anónimo”?

Best nunca poderia deixar de ser Best, ou como dizem os seus conterrâneos e fãs irlandeses “ Maradona Good, Pelé Better, George Best!”